10.7.08

desconversa

Duas pessoas que não se conhecem, obrigadas a passar algum tempo juntas (motorista de táxi e passageiro, viajantes sentado lado a lado em avião, onibús ou trem, dois numa fila), sobre o que conversam?

Em 77% dos casos, sobre o tempo.

- Quente, né?
- Acho que vai chover.
- É, tá com cara.

O tempo é um assunto seguro de todas as coisas que duas pessoas têm pressumivelmente em comum (falam a mesma língua, estão ali com um destino ou um objetivo igual ou parecidos, são contemporâneos e são seres humanos) o fato de experimentarem as mesmas condições clímaticas é a mais indiscutível de todas.

- Ontem deu uma refrescadinha.
- É verdade. Pelo fim da tarde.
- Isso.

Nenhum desacordo é possivel, quando se começa conferindo o sentimento da temperatura vigente, sua memória do tempo que fez e seu palpite sobre o tempo que fará. Falar sotre futebol é arriscado. As probabilidades de torcerem pelo mesmo time não são boas. E se torcerem por times diferentes, por mais tentem minimizar está diferença, ela sempre estará lá, como lava incadescente sob a conversa, ameaçando irromper por uma brecha. Política, nem pensar. E não caberia comentarem apenas suas afinidades básicas como espécie. Respirar fundo e dizer:

- Coisa boa, oxigênio, né?
- Nem me fala, Felizmente, ele compõe boa parte da atmosfera terrestre.
- Se não fosse isso...
- Não quero nem pensar.

Ou:

- Não pude deixar de observar que a senhora é uma bípede mamífera de sangue quente, como eu.
- Que coincidência!

Melhor falar sobre o tempo. É assunto mais à mão, e o único com cem por cento de garantia de interessar a todos e fazer parte de um experiência universal.

- Se chover, talvez refresque de novo.
- Geralmente, é assim.

A partir daí, a conversa pode derivar para outros tópicos de interesse geral, como atividade de cada um, ou de universalidade garantida, como comida ou novela das oito.
Existe outro assunto comum a toda a espécie, talvez o assunto prioritário da espécie, que só não inaugura todas as conversas porque também é o seu principal terror. A morte. Falamos do tempo para não falarmos da nossa outra afinidade óbvia, além da expêriencia do mesmo clima: a mortalidade. Imagine como seria.

- Você sabe que nós vamos morrer, não sabe?
- Sei. Todos sabem. É inescapável.
– O jeito é viver como se não soubéssemos. Você concorda?
– Sim. Seria impossível levar uma vida normal se não conseguíssemos conviver com nossa mortalidade, e acomodá-la, como uma hérnia inoperável.
– Temos é que negociar com a morte o tempo todo, como se negocia um armistício. Reconhecendo a sua vitória e o seu domínio, mas exigindo tratamento digno, como é o direito de todo prisioneiro.
– Mas não se pode racionalizar com a morte. A morte está além de qualquer racionalização. Ela não tem nenhum acordo para oferecer, nenhuma saída, nenhum meio-termo. Não tem nem uma explicação para nos dar. A única maneira de tratar a morte é nos seus próprios termos: ignorá-la, e tentar viver como se ela não existisse. Ou matá-la. O que você pensa do suicídio?
–Sei não. É o nosso corpo que nos mata. (Matá-lo primeiro, francamente, me parece uma forma de colaboracionismo).
– Mas negociar com a morte significa reduzir toda a nossa vida a um pedido de clemência, a uma lamúria interminável. Não é só a vida que fica inviável, é a conversa. Pois tudo que não é com ou sobre a morte, é desconversa.
– Por sinal, você acompanha a novela?

Mas há quem diga que toda conversa, no fundo, é sobre sexo, outro assunto universal da espécie. O tempo é apenas um disfarce. Ou um código.

– Quente, né? (Topas?)


Luis Fernando Veríssimo

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